Relatórios de PDE: 11 erros frequentes

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Em época de grandes mudanças no mercado farmacêutico nacional, a questão relacionada à elaboração dos relatórios de PDE virou um grande chamariz para aqueles que enxergam aí uma oportunidade comercial de grande faturamento, visto o alto valor cobrado por alguns. E neste sentido, profissionais, que muitas vezes nem se quer conhecem um processo ou equipamento produtivo se colocaram no mercado para elaborar tais documentos, e que são de suma importância para a execução dos estudos de validação de limpeza e no gerenciamento de riscos de compartilhamento de áreas produtivas.

Com a desculpa de que “é tudo muito novo” muitos destes profissionais da área de validação, ou mesmo toxicologistas, não conseguem explicar algumas dúvidas recorrentes a respeito dos relatórios de PDE. E com a intenção de desmitificar tais dúvidas, e até mesmo mitos, trouxe aqui um artigo inédito para comentar os maiores erros de interpretação e elaboração dos relatórios de PDE.

E dando início à polêmica, vamos aos principais erros, mas não os únicos cometidos:

1. Elaborar o relatório somente avaliando o IFA

No meu ponto de vista, este é o erro crucial de um relatório de PDE. Muitos elaboram o relatório do IFA e esquecem que temos que avaliar o(s) ativos(s) do MEDICAMENTO. Isso quer dizer que:

  • Temos que considerar as propriedades farmacológicas dos medicamentos, tais como a farmacodinâmica e a farmacocinética
  • Devemos avaliar as associações dos ativos presentes no medicamento
  • O PDE deve ser de via de específica, ou seja, conforme a via de administração do medicamento.
  • Importante avaliar a posologia, eventos adversos, principalmente os graves, superdosagem, além das interações medicamentosas.
  • Não podemos esquecer de avaliar os subsequentes – comentaremos melhor este ponto em outro tópico
  • E não esquecer de avaliar a forma farmacêutica

Diante de tais pontos a serem avaliados, como é possível fazer um relatório apenas por IFA? Como não considerar as diferentes formas farmacêuticas e vias de administração do medicamento e elaborar um único relatório do ativo?

Não entendi, de verdade, como os famosos consórcios para elaboração dos relatórios de PDE emitem seus documentos sem avaliar aspectos tão importantes e que impactam diretamente na saúde dos pacientes.

2. Fazer relatórios de PDE apenas dos piores casos da validação de limpeza

Isso é um grande mito que tem sido comentado por aí. A questão não é querer vender relatórios de PDE, e sim atender ao requisito normativo.

E para que isso fique mais claro, segue o artigo da RDC 301/2019 que determina a elaboração dos relatórios de PDE para 100% do portifólio de medicamentos das empresas:

Segundo a ANVISA (RDC nº 301/2019):

“Art. 370. De forma que as empresas se adequem e atendam aos requerimentos normativos constantes do art. 171 constante nesta Resolução, estão estabelecidos os seguintes prazos, a contar da vigência da norma:

I – em até 06 (seis) meses da vigência da Resolução, as empresas já deverão ter concluído as (re) estruturações/integrações de seus Sistemas de Qualidade Farmacêutica e de Gerenciamento de Risco; terem capacitado e treinado seus colaboradores (de diversos departamentos caso se envolvam nas atividades de operações produtivas, incluindo principalmente o gerenciamento/controle de risco de contaminação cruzada); identificado e contratado serviços/profissionais qualificados (profissional toxicologista capacitado; treinamento; com perícia e experiência prática) para as determinações dos valores de Exposição Diária Permitida dos produtos, de forma a subsidiar as reavaliações dos limites residuais máximos permitidos carreados entre produtos, no que tange às validações dos procedimentos de limpeza de superfícies de equipamentos em contato com os produtos;

II – em até 12 (doze) meses de vigência da norma, quando da introdução de quaisquer produtos (comerciais e experimentais) nas linhas de produção, as empresas já deverão atender, na íntegra, o novo requisito normativo;

III – em até 12 (doze) meses da vigência da Resolução, as empresas já deverão atender, na íntegra, o novo requisito normativo para todos produtos (comerciais e experimentais) com pelo menos uma das seguintes características: genotoxicidade; carcinogenicidade; toxicidade reprodutiva/desenvolvimental; altamente sensibilizantes;

IV – em até 24 (vinte e quatro) meses da vigência da Resolução, as empresas já deverão cumprir, na íntegra, o novo requisito normativo para 30% de todos os produtos do portfólio (comercial e experimentais);

V – em até 36 (trinta e seis) meses da vigência da Resolução, as empresas já deverão cumprir, na íntegra, o novo requisito normativo para 60% de todos os produtos do portfólio (comercial e experimentais);

VI – em até 48 (quarenta e oito) meses da vigência da Resolução, as empresas já deverão cumprir, na íntegra, o novo requisito normativo para 100% de todos os produtos do portfólio (comercial e experimentais).

O 2º Art da RDC nº 388 de 26 de maio de 2020 revogou o III inciso do Art. 370 da RDC nº 301 de 21 de Agosto de 2019.

Desta forma, fica claro que não apenas os piores casos da validação de limpeza devem ter seus relatórios elaborados, mas sim todos os medicamentos fabricados pelas empresas.

3. Não considerar as propriedades farmacológicas do medicamento

Este ponto já foi comentado de forma sutil no primeiro erro, mas é importante ressaltar. Cada forma farmacêutica de um medicamento, e sua respectiva via de administração, possui farmacocinética diferenciada, que implica no tempo que o IFA levará para atingir o órgão ou tecido alvo, e exerça seu mecanismo de ação para o aparecimento do efeito. A via de administração é um fator que interfere no aparecimento do efeito nocivo. Em um cenário de avaliação toxicológica, a via de administração não só demonstra os efeitos tóxicos possíveis em humanos e animais, como também estabelece um determinado valor de PDE específico. Isso quer dizer que é esperado um valor de PDE de um medicamento/IFA diferente de acordo com sua via de administração e muitas vezes, para formas farmacêuticas diferentes, mesmo que estas tenham a mesma via de administração. O entendimento da farmacodinâmica e da farmacocinética, fazem toda diferença na elaboração de um relatório de PDE robusto e coerente.

4. Ignorar as associações

Ao elaborar um relatório por IFA, mesmo sendo de via específica, pode ocorrer um erro crasso. Muitos estudos toxicológicos pré-clínicos, e até mesmo os estudos clínicos, são realizados com as associações e não com o ativo isolado.

Ignorar a associação é um grande passo para cometer um erro fatal no relatório de PDE.

5. Não considerar os dados clínicos em humanos

De fato, esse é um clássico dos erros: esquecer de avaliar os dados clínicos em humanos.

Se um medicamento é indicado para a terapia farmacológica em humanos, porque apenas considerar estudos em animais, mesmo que sejam aplicados os fatores de ajustes?

E como resultado, pode acontecer de um efeito crítico (evento adverso grave) ser observado em animais, mas não ser confirmado em humanos. E levando em consideração apenas os dados em animais para a determinação do potencial de genotoxicidade, mutagenicidade, carcinogenicidade, toxicidade reprodutiva e sensibilização, estes podem ser erroneamente classificados.

Além disso, podemos ter uma situação inversa, reações adversas clássicas, como reações de hipersensibilidade, descritas e evidenciadas em humanos, mas que não foram observadas nos testes pré-clínicos, em modelos animais.

6. Não avaliar o impacto do compartilhamento de área produtiva

Avaliar o compartilhamento da área produtiva é obrigatório. Isso porque há os seguintes pontos de impacto:

  • Os subsequentes podem ter vias de administração diferentes, sendo necessária a correção em um eventual cenário (hipotético, é claro) de contaminação cruzada.
  • Podem ocorrer interações medicamentosas aumentando o risco do compartilhamento.
  • O gerenciamento de riscos de contaminação cruzada deve obrigatoriamente avaliar este cenário, sendo um dos métodos de detecção o relatório de PDE.

Diante deste cenário, a visão do especialista em validação de limpeza, e não apenas do toxicologista, é fundamental para mitigar os riscos relacionados ao compartilhamento, além de determinar ações apropriadas para minimizá-los, diminuindo o prejuízo e impacto da saúde dos pacientes que farão uso de tais medicamentos.

Para mais informações, leia o artigo: Compartilhamento de área produtiva e o Gerenciamento de Riscos

7. Não avaliar os riscos das informações inseridas

Este é um ponto de grande discussão.

Financeiramente, entendo que não é interessante para as indústrias farmacêuticas determinarem um prazo de validade para os relatórios de PDE, visto seu alto custo (justificado pelo enorme trabalho e complexidade de sua elaboração, importante este esclarecimento!). A questão é que periodicamente os comitês de toxicologistas e as Agências Regulatórias Internacionais publicam reviews. Além disso, novos estudos de pesquisas clínicas são realizados com frequência, sendo estes resultados importantíssimos para o PDE.

Importante ressaltar que tais revisões dos dados farmacológicos e toxicológicos devem ser considerados, utilizando-se informações atualizadas. Até mesmo a ANVISA publica alertas de farmacovigilância com eventos adversos graves, que muitas vezes não eram conhecidos, e isso muda todo o risco do medicamento. Ignorar estes reviews e os riscos das informações dos dados pesquisados, pode ser um alto risco do ponto de vista do paciente, além do não atendimento do ICH Q9, é claro.

Diante disso, é recomendado estabelecer um prazo para a revisão dos relatórios, baseado em riscos, para garantir a atualização dos mesmos.

8. Utilizar apenas a FISPQ do IFA

Não se sabe se por preguiça, por falta de conhecimento, ou porque o profissional/empresa se comprometeu a fazer mais relatórios de PDE do que consegue entregar, mas fato é que alguns relatórios de PDE podem ter sido emitidos apenas com os dados de FISPQ/MSDS, e isso é um erro crucial.

O toxicologista (sim, o relatório de PDE é emitido por toxicologista, e não por analista de validação) deve esgotar as fontes de pesquisas e os dados bibliográficos para certificar-se de que todas as informações pertinentes e os estudos relevantes foram corretamente inseridos nos relatórios de PDE.

A FISPQ pode ter até informações relevantes, mas muitas vezes incompletas e sem a rastreabilidade necessária, e por isso os relatórios de PDE elaborados a partir somente destes dados devem ser desconsiderados.

9. Confundir a mínima dose da posologia com a menor dose empregada no estudo

Entendo que os relatórios de PDE são muito diferentes dos relatórios de validação de limpeza nos quais os profissionais desta área estão acostumados. É um relatório que depende da interpretação do toxicologista, algo que é muito difícil de ser entendido, e confesso que foi também para mim no início.

Entretanto, estamos acostumados com a mínima dose, com o menor valor, com o cenário mais crítico, e nem sempre isso vale para o relatório de PDE. De fato, pode acontecer do menor valor obtido não ser o mais indicado e até mesmo o adotado, pois o estudo do qual ele foi embasado pode não ser o mais relevante, completo, e robusto do ponto de vista do toxicologista, e isso gera muita confusão.

Outra coisa, é que muitas vezes é difícil de entender que nem sempre um estudo clínico escolhido para o cálculo trará a menor dose prevista na posologia do medicamento. Importante compreender que a menor dose é sempre a do estudo avaliado e não a posológica.

10. Achar que todas as indústrias farmacêuticas que fabricam medicamentos com um determinado IFA terão o mesmo valor de PDE.

Justamente porque a elaboração dos relatórios depende exclusivamente da interpretação dos dados por parte dos toxicologistas, e muitas vezes até mesmo dos bancos de dados pesquisados, é que um PDE de um IFA, tendo a mesma forma farmacêutica, e a mesma via de administração, pode ser diferente do obtido por outro toxicologista.

Já vi empresas com tabelas de PDE apresentadas para fiscais, e que obviamente não foram aceitas. Os relatórios precisam de rastreabilidade, de dados robustos de fontes confiáveis, e de um toxicologista experiente, é claro.

Ah! As informações vão exclusivamente da interpretação e das escolhas feitas pelo toxicologista com base na sua experiência. A análise de risco para a escolha das informações, como estamos acostumados, não se aplica aqui.

11. Achar que todo toxicologista sabe elaborar relatórios de PDE

Para a elaboração de um documento robusto é necessário um toxicologista comprovadamente experiente, e preferencialmente com doutorado/PHD, justamente para buscar, escolher e interpretar os estudos mais relevantes para os relatórios de PDE.

A questão é que no Brasil o assunto é novidade para grande parte dos toxicologistas, por atuarem em outras áreas da toxicologia, desconhecerem ou não ter familiaridade com a avaliação toxicológica e determinação do cálculo do PDE. Desta forma, havendo dificuldades na elaboração de um relatório de acordo com o preconizado pela ANVISA. Não se assustem, mas é algo novo até para eles.

Então, é por isso que muitos toxicologistas que estão descobrindo esta oportunidade de trabalho, e até mesmo de ganho financeiro, não sabem responder muitas das dúvidas que os profissionais de validação possuem. São mundos diferentes, que nunca antes haviam trabalho em parceria, ao menos no Brasil, e que desconhecem como funciona a indústria farmacêutica.

Da mesma forma, os profissionais que atuam na validação de limpeza, não tem conhecimento para a elaboração da avaliação toxicológica e cálculo de PDE. É importante a realização de um trabalho conjunto, com a finalidade de compartilhar conhecimentos e experiências.

De fato, essa é a grande verdade.

Sendo assim, se o toxicologista não possui experiência em PDE, ele precisa se especializar no assunto para que os relatórios não sejam questionados futuramente por parte da ANVISA.

Conclusão

Concluindo, foram apontados alguns erros cruciais frequentemente encontrados nos relatórios de PDE, mas estes não são todos. No entanto, a lista de erros comum é extensa e crítica.

Apesar de ser uma assunto novo, tais relatórios já são uma exigência na Europa (EMA) desde de 2015, sendo assim, há possibilidade de se obter referências mais completas sobre como elaborar documentos robustos, e não simplesmente ficar na interpretação ao pé da letra, única e exclusivamente, do Guia de 2015 dessa Agência.

Sendo assim, este artigo teve como finalidade esclarecer e ajudar os colegas de validação que ainda estão com muitos questionamentos sobre os relatórios de PDE.

Mas se tiverem dúvidas, ou mesmo necessitarem de ajuda para elaborem seus documentos, não deixe de nos contactar:

Mais informações e cotações através do e-mail : contato@farmaceuticas.com.br

Referências

  • EMA – ANNEX 4 MANUFACTURE OF VETERINARY MEDICINAL PRODUCTS OTHER THAN IMMUNOLOGICAL VETERINARY MEDICINAL PRODUCTS
  • EUROPEAN MEDICINES AGENCY – EMA. Guideline on setting health based exposure limits for use in risk identification in the manufacture of different medicinal products in shared facilities, 2014.
  • FOOD AND DRUG ADMINISTRATION (FDA) – Pharmacology and Toxicology – Guidance for Industry Estimating the Maximum Safe Starting Dose in Initial Clinical Trials for Therapeutics in Adult Healthy Volunteers –2005
  • ICH HARMONISED TRIPARTITE GUIDELINE QUALITY RISK MANAGEMENT Q9
  • ICH Q3C  – Impurities: Guideline for Residual Solvent
  • INSTITUTE OF OCCUPATIONAL MEDICINE. A Proposal for Calculating the No-Observed-Adverse-Effect Level (NOAEL) for organic compounds responsible for liver toxicity based on their physicochemical properties Marek Jakubowski and Sławomir Czerczak Nofer, Łódź, Poland Department of Chemical Safety – 2014.
  • INSTRUÇÃO NORMATIVA ANVISA Nº 47/2009 – Estabelece regras para elaboração, harmonização, atualização, publicação e disponibilização de bulas de medicamentos para pacientes e para profissionais de saúde.
  • PIC´S – PHARMACEUTICAL INSPECTION CONVENTION PHARMACEUTICAL INSPECTION CO-OPERATION SCHEME PI 053-1 1 June 2020 Questions and answers on implementation of risk-based prevention of cross-contamination in production and ‘guideline on setting health-based exposure limits for use in risk identification in the manufacture of different medicinal products in shared facilities’
  • PIC´S – PHARMACEUTICAL INSPECTION CO-OPERATION SCHEME PI 052-1 1, June 2020 Inspection of health based exposure limit (hbel) assessments and use in quality risk management.

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Fernanda de Oliveira Bidoia
Formada em 2000 em Farmácia industrial pela Faculdades de Ciências Farmacêuticas Oswaldo Cruz, começou a atuar na área farmacêutica em 1998 com projetos científicos e em farmácia de manipulação. Em 2001 iniciou sua carreia em indústria farmacêutica, atuando nas áreas de Controle de Qualidade, Garantia e Gestão de Sistemas da Qualidade, Qualificação e Validação. Com experiência de mais 20 anos no setor, trabalhando em indústrias farmacêuticas nacionais e multinacionais, hoje realiza consultorias e treinamentos para indústrias de medicamentos, indústrias de cosméticos e saneantes, distribuidoras e montadoras de equipamentos da área farmacêutica. Empresária, consultora, blogueira, fundadora do Portal Farmacêuticas e da consultoria que leva o mesmo nome, esposa e mãe de duas filhas, tem como nova missão a criação de um portal, Farmacêuticas, voltado exclusivamente para o mundo farmacêutico, com dicas de projetos, eventos, cursos e notícias.

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